Jazz é um estilo eclético que permite tudo, abraça os demais gêneros musicais justamente por usar e abusar da improvisação – e talvez sejam esses detalhes que fazem muitas pessoas ainda não pegarem a coisa toda! Essa mistura sempre resultou em discos geniais e artistas únicos que conseguem transmitir através de seus instrumentos toda uma cadeia de sentimentos ímpares!
Mas tudo tem o seu preço. Graças ao estigma de ser uma música classista criada para um suposto seleto grupo de elite ou até mesmo somente aqueles que possuam uma formação cultural acima da média, o jazz passou a ser um estilo incompreendido e muito pouco requisitado. Mas isso tudo está longe de ser uma verdade, até porque o jazz nasceu, assim como o blues, no seio da cultura afro-americana por meio de artistas humildes por volta de 1900 em New Orleans, quando houve uma grande explosão musical misturando diversos estilos.
As work songs, o já citado blues e o ragtime se misturaram naturalmente aos ritmos complexos da música trazida pelos escravos africanos para a América do Norte e às harmonias trazidas pelos imigrantes europeus ao mundo novo – tudo isso mediante conjuntos que amavam improvisar melodias e solar de maneira livre para alçar novos voos musicais.
Em outras palavras: deixar de buscar o jazz por não se considerar apto para apreciar o estilo musical nada mais é do que abrir mão de grandes canções por puro e simples preconceito – e isso é refletido nas novas gerações, que encontram nos pobres ritmos atuais com estilos duvidosos, conteúdos fracos e melodias limitadas, sem nenhuma profundidade, um meio mais fácil de escutar “música”.
Por este motivo é que um trabalho maravilhoso como este Another Day de Oscar Peterson acaba escondido para as novas gerações. Quem descobre um disco como este, por exemplo, arrisca ficar taxado como esnobe, mas na verdade está ganhando uma passagem sem volta de felicidade musical em um oceano banhado por artistas sem igual que o jazz pode proporcionar. Chamar de música própria de elite um estilo que nasceu de mescla sonora feita de pessoas talentosas de origem humilde? Conta outra história, cara! O pianista canadense Oscar Peterson foi um gigante (em todos os sentidos) do jazz durante seis décadas, gravando inúmeros discos e se apresentando ao lado de músicos consagrados.
A música estava no seu DNA, uma vez que ele vinha de uma família que respirava música, fazendo com que o jovem Oscar estivesse envolvido com as notas musicais desde sempre. Seu pai fazia questão que seus cinco filhos aprendessem pelo menos um instrumento musical e como o jazz pegou Oscar de jeito aos cinco anos, ele começou a tirar as suas primeiras notas de um trompete. Com certeza é da natureza deste instrumento que surgiu a habilidade de tocar notas de maneira rápida que Peterson. Ainda pequeno, o jovem aprendiz foi forçado a abandonar o instrumento logo após um ataque de tuberculose – e é aí que nasce a lenda do piano!
Com o passar dos anos, Peterson foi acumulando discos brilhantes que entraram para o folclore do jazz como Night Train, de 1963. Na década de setenta (que é o foco desta obra) o pianista já chega com um disco altamente recomendado para qualquer pessoa que esteja buscando uma referência dentro do estilo. Mesclando momentos mais acessíveis do jazz tradicional com lances mais livres, o disco é um desfile de habilidade musical nos dedos deste gigante músico canadense que está muito bem acompanhado de George Mraz no baixo e o fantástico Ray Price dando uma aula de bateria.
O disco abre com Blues for Martha, composta pelo próprio Peterson, que resolveu começar tudo no maior astral com o nosso pianista arregaçando uma linha no piano cadenciada e swingada. Um boogie com base no blues cuja marcante linha de piano possui frases e mais frases que não se esgotam em nenhum momento sequer. Peterson usa e abusa de seus comparsas Mraz e Price que dão o molho que a canção precisa. Sem dúvida uma das melhores aberturas de discos de todos os tempos.
Greensleeves é aquela mesma música de origem medieval do folclore inglês muito conhecida por seguidores de alguns guitarristas de rock como Ritchie Blackmore, do Deep Purple. O arranjo que Peterson cria é delicado e cheio de nuances, principalmente na bateria que acompanha até mesmo nos momentos mais silenciosos. Peterson faz das teclas de seu piano a extensão de seus dedos em fugas precisas sem desconfigurar a melodia, fechando com uma delicada progressão. Vamos resumir da seguinte maneira: se esta não for a melhor versão de Greensleeves que eu já ouvi até hoje, está bem perto de ser.
I’m Old Fashioned, uma composição do premiadíssimo compositor americano de música popular Jerome Kern (com invejáveis 700 composições no currículo) e de Johnny Mercer, outro compositor que também era letrista de mão cheia, traz de volta o clima para cima da abertura do disco em uma grande música lotada de improvisações e com inúmeras paradas estratégicas – além de uma cozinha musical de dar inveja em qualquer trio de jazz. A velocidade nos dedos, uma das principais características de Peterson, emerge novamente até que o pianista abre espaço para George Mraz mostrar o seu talento com um solo pontual que serve de ponte para a música voltar à sua melodia inicial. Daí pra frente o que se ouve é a banda se divertindo – e sim, dá para sentir que eles amavam o que faziam sem sombra de dúvida.